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terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

As filhas do Sangue


A estória que vou contar podia ter muitos fins, podia ter muitas soluções, podia agora nem existir, mas vou limitar-me a contar o que aconteceu.

Era Sábado, dia de compras e mercado, dia em que todos se cruzavam e em que os sorrisos eram partilhados. Mas naquele Sábado fomos acordados com uma notícia terrível: a mãe da minha amiga S. tinha morrido.

A S. era a filha mais velha, havia ainda uma menina mais nova. Eu e a S. andávamos juntas na escola e no ballet e brincávamos juntas, corríamos juntas, chorávamos juntas. Ainda éramos crianças, ainda tínhamos sonhos como todas as crianças, ainda gostávamos de construir castelos e brincar às princesas.

O Pai da S. trabalhava no estrangeiro. Vinha muito raramente a Portugal e quando vinha não se via ninguém naquela casa, era um homem distante a quem a S. aprendeu a respeitar. Tinha estado em Portugal pouco antes da mãe da minha amiga morrer.

A mãe da S. trabalhava numa fábrica de componentes eléctricos aqui da zona. Criava, sozinha, duas filhas. Não havia fartura naquela casa, mas havia amor daquela mãe. Do pai havia apenas a figura austera, um medo inconsequente. A S. não gostava de falar dele nas nossas brincadeiras, a S. não gostava de estar em casa quando o pai estava em Portugal.

Mas naquele Sábado algo de muito triste tinha acontecido. A mãe da minha amiga morreu. Tinha ficado grávida pela terceira vez naquelas semanas em que o marido esteve em Portugal. Não tinha ninguém que lhe pudesse dar a mão, estava sozinha com duas crianças pequenas e sem condições para educar mais um.

A mãe da S. fez um aborto. Diz-se que foi a uma mulher que deu umas ervas e lhe fez umas mezinhas. Deu entrada no Hospital poucas horas depois a esvair-se em sangue. Não resistiu às infecções sucessivas e deixou duas filhas pequenas entregues a estranhos.

Naquele Sábado, ia na rua de mão dada com a minha mãe quando me cruzei com a minha amiga S. Apeteceu-me correr para ela e dizer-lhe que estava ao seu lado, mas a pessoa-adulta que estava com ela fez-nos sinal para não falarmos.

A mãe da S., mesmo depois de morta continuava a ser julgada e aquelas crianças foram sempre as filhas daquela mulher, as filhas do sangue daquela mulher. Foram afastadas à força dos seus amigos, da escola, foram privadas do amor-de-mãe e obrigadas a crescer sob o estigma da mulher que abortou.

Vale a pena pensar se queremos que estórias destas continuem a acontecer.