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sábado, 2 de janeiro de 2010

Ano Novo

Precisamente na primeira noite do ano, ela tomou banho, hidratou a pele, colocou a sua melhor lingerie, a camisa de seda e um roupão perfumado.
Estava cansada, pesava-lhe o corpo, pesava-lhe o medo do amanha.
Esta era a sua última noite.
Colocou os comprimidos sobre a mesa e foi tomando um a um, com calma.
Sem medo, sem dramas, sem lágrimas, "descanso eterno" o que vem escrito nos cartões das flores dos funerais.
Sim, era mesmo, descanso eterno pensou ela ao tomar o último comprimido.
Levantou-se colou o bilhete no espelho da casa de banho e deitou-se no sofá.

O dia amanheceu risonho. O sol brilhava como já não havia memória. Um dia de Primavera, diria ela se estivesse acordada para o sentir.
Ele acordou cedo, vestiu-se e sem lavar a cara ou tomar o pequeno almoço saiu para mais uma das suas aventuras desportivas.
Ela dormia profundamente no sofá.

O suor corria-lhe ainda no rosto. O sangue quente, as veias dilatadas, o corpo cansado. Chegou com pressa e quando se dirigiu para a duche leu em silêncio o bilhete colado no espelho: "Quando leres esta mensagem, já não estarei aqui. Fui finalmente viver!"

Pensou que era mais uma das muitas mensagens de delírio que ela lhe escrevia, preparava-se para a guardar na gaveta pequenina, onde tinha guardado todas as outras, mas regressou à sala e ela permanecia a dormir.

Ela nunca pensou que estaria a julgar com este acto o maior culpado da sua morte. Pensou apenas na sua libertação.
Ele esteve três dias sem conseguir chorar, preso às últimas palavras que tinham trocado. Assassino da mulher que dizia amar. Sem saber morreu naquele dia. Abriu os mais de 30 bilhetes guardados em silêncio e chorou, gritou e entregou-se à sua culpa.

Uma década passou. A vida não seria a mesma, ela teria hoje 40 anos e uma filha de 10 se tivesse aguentado viver no porão da condição humana. A filha que levava no ventre teria o sorriso da mãe e seria a alegria da sua vida.
Ele ficou encurralado nesse mesmo ano. A barba cresceu e ficou para sempre branca, agora amarelada pelo tempo que secou junto com todo o mal que deixou acontecer a cada minuto.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

O último voo...


Ela tinha tudo planeado. A vida deixou de ter sentido quando ainda se sentia feliz, agora tinha-se tornado insuportável vivê-la.

Naquela manhã saiu de casa decidida a não voltar. Levava na carteira o indispensável para ser reconhecida quando o inevitável acontecesse.

Despediu-se das suas companheiras de sempre, duas gatas que naquele dia pareciam pressentir a saudade que se abatia sobre aquelas paredes. Ela não conseguiu sorrir, as lágrimas caíram enquanto se desfazia em festas.

Pelo caminho, tocava Palma.

Tira a mão do queixo, não penses mais nisso
O que lá vai já deu o que tinha a dar
Quem ganhou, ganhou e usou-se disso
Quem perdeu há-de ter mais cartas para dar
E enquanto alguns fazem figura
Outros sucumbem à batota
Chega aonde tu quiseres
Mas goza bem a tua rota

Enquanto houver estrada para andar
A gente vai continuar
Enquanto houver estrada para andar
Enquanto houver ventos e mar
A gente não vai parar
Enquanto houver ventos e mar

Tinha chegado ao fim. A rota estava viciada, as cartas só indicavam um caminho. E o Palma sabia melhor do que ela, dos seus sonhos, das suas vitórias e das suas derrotas.

O mar estava à sua espera. Fazia pequenas gracinhas com as ondas. A névoa encobria a lágrima que teimava em escorregar. Não era dúvida o que sentia, era saudade de tudo aquilo que não viveu. Fechou os olhos e deixou-se cair. Os olhos fechados e o vento a acariciar-lhe a cara. O corpo pesado e uma sensação de liberdade que não sentia desde que era criança e o perigo não representava as barreiras reais do mundo dos crescidos.

Uma dor aguda fez com que se encolhesse e depois o infinito. Deixou de lutar.

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A queda foi quase perfeita, repetia o nobre surfista que a tinha salvo da morte.

Desceu num voo silencioso e caiu sem bater em nenhuma rocha. Acabou por lutar com a corrente que a atirou vezes sem conta contra a falésia, até ser resgatada pelo jovem de olhos verdes e pele muito queimada pelo sol.

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Só se dá realmente valor ao sofrimento dos outros, quando percebemos que nada podemos fazer por eles.

O corpo não suportou os traumatismos, vegetava com inúmeras contusões, retratava a realidade daquela alma em desespero. As cicatrizes do rosto seriam para sempre a recordação da sua última vontade. E para os outros aquela era uma verdade surda que poucos iriam aceitar e suportar.

A sua respiração não alimentava esperanças. As máquinas adiavam apenas o esperado. E ela lutava por se manter assim. Ninguém!