quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

No dia seguinte

No dia seguinte o José continuava pálido, com a barba por fazer e umas olheiras pesadas.
Tinha passado a noite acordado, afogado em Johnnie Walker e cigarros. As lágrimas soavam num ritmo constante e as gargalhadas dela não o abandonavam. Aliás era esse o eco da sua alma, o riso da Mafalda, os porquês da Mafalda e a sua última pergunta:
- Pai, porque não me vais levar à escola hoje?
- Não posso, tenho uma reunião às 9 horas.
- Então não quero ir à escola.
- Não Mafalda, a vida não pode ser um puzzle que montas e desmontas quando te apetece.
A Mafalda respondeu triste:
- Porquê pai, porquê?
Tinha sido a sua última frase e não chegou a ir à escola, a sua última gargalhada foi na Baixa do Porto, em frente à Livraria Noticias, quando um carro em despiste a deixou banhada em sangue e sem vida no passeio.
Nas semanas seguintes José passou horas e horas sentado perto do local do acidente, como um mendigo. Esperava respostas e o eco do “porquê” enlouqueciam-no.
Na montra da Livraria Noticias um livro em destaque “A vida pela vida” de Josefa Alves. Aquele nome não lhe era estranho e o nome do livro era sugestivo, ainda para mais no local do acidente.
Foi então que se fez luz, na apagada memória do José…Josefina Alves, Josefina Alves – a aluna que ele reprovou no último ano do curso de Jornalismo. Hoje sabia-o, reprovou Josefina por capricho, por birra, apesar de acreditar no seu talento.
Uma onda de cólera inundou-lhe o peito e o rosto. Estes episódios tinham acontecido vezes sem conta durante o seu curriculum de professor Académico, era um vício, um trauma, não sabia bem, mas gostava de castigar todos aqueles que não lhe davam importância, ou talvez, que lhe dessem tanta importância que faziam aquilo que ele adorava fazer…trabalhar à sua maneira!
Entrou na livraria. Comprou o livro. Leu-o sem parar, sentado no mesmo local onde Mafalda tinha respirado pela última vez.
O livro contava a história de uma família destruída por um violento acidente de automóvel. Margarida a filha mais nova do casal, com seis anos, acabou por não resistir e aos poucos a família tinha ficado desmantelada por uma série de acidentes.
Quando terminou de ler o livro, José chorava como uma criança pequena, talvez uma criança de seis anos a quem o pai lhe diz que não pode levar à escola, mesmo sabendo que esta pressentia o pior. Mais uma vez o capricho falou mais alto. Mais uma vez tinha destruído algo em que acreditava.
Na montra da livraria, um cartaz anunciava uma sessão de autógrafos marcada para as 22 horas daquele dia. A autora de “A vida pela vida” ia estar ali.
Lembrou-se das palavras da Mafalda “Porquê pai, porquê?”. Lembrou-se das palavras da Josefina quando confrontada com a pauta “Porquê professor, porquê?”, por isso decidiu que estava na hora de fazer alguma coisa na vida, de coração.
A Josefina estava quase na mesma, ar jovial, sorriso fácil, descontraída. Sorria para os seus admiradores e rubricava os seus livros com um à vontade próprio de quem tem talento. Chegou a vez do José. Os seus olhares cruzaram-se. Os olhos de Josefina encheram-se de lágrimas repentinamente e José lembrou-se da última vez que a tinha visto chorar.
Não conseguiram falar, ficaram ambos a olhar um para o outro de olhos húmidos e cara fechada. José segurava trémulo o livro e Josefina de caneta na mão fazia um esforço por se controlar e para conseguir dizer qualquer coisa.
- Parabéns pelo talento – disse finalmente José.
Josefina suspirou e corou. O momento que esperava há anos tinha finalmente acontecido. Os longos anos de sofrimento, de angústia e de incertezas estavam agora desfeitos com uma simples frase. Sorriu. Estendeu a mão na direcção de José que lhe entregou o livro.
Depois de uma curta dedicatória Josefina devolveu o livro, agradeceu a presença e as palavras e quando José já se preparava para sair ela perguntou-lhe:
- Porquê professor, porquê???
José respondeu:
- Porque só agora percebi que não posso continuar a destruir por capricho!

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