segunda-feira, 19 de dezembro de 2005

O encontro

Ela descia as escadas rolantes de um centro comercial. Ele subia. Cruzam-se em sentidos opostos, como a adivinhar um futuro distante. Os olhares juntam-se e não conseguem largar-se. A estranha sensação que se conhecem há longos anos, talvez desde sempre.
Ela sempre atarefada. Leva o Mundo nas mãos, trabalha sem parar sempre com o coração bem perto da boca. Ele calmo, caminha lentamente, não temendo que a vida o desampare mais. Excêntrico, verdadeiro, misterioso.
Talvez tivesse sido esse lado excêntrico e misterioso dele que tenha feito Margarida sonhar vezes sem conta com aquele olhar, com a presença daquele estranho que tanto lhe dizia. Sentia que o conhecia de algum lado e a todo o instante percorria os cantos da sua memória para conseguir encontrá-lo num qualquer lugar da sua vida.
André, que pouco ou nada sabia dos outros, procurava-se apenas, sentiu que pela primeira vez aquele olhar o tinha prendido. Não a procurava, mas também a sonhava nos seus braços, sem acreditar que isso fosse possível.
Indisponíveis. Ausentes. Muito próximos de se alcançarem. Viajavam lado a lado sem perceber que os seus caminhos se tocavam, se completavam. Afastavam-se sempre que procuravam encontrar-se.
A vida está repleta de casos destes, de almas que se encontram e se afastam. Encontram-se nos sítios mais banais, mais comuns que possamos imaginar. E afastam-se quando já se conhecem, quando se amam, quando encontraram uma infinidade de pontos em comum.
Assim foi com Margarida e André. Acabam por se cruzar vezes sem conta. Ficam presos sem saber, nos olhares que trocam de forma inocente e descomprometida. Um dia Margarida toma a iniciativa e vai falar com André. A partir desse dia não se largam mais. Dois longos anos de amor intenso e sofrimento incansável. Tão parecidos e tão desencontrados. Partilham o apelido, a cor favorita, o número da sorte, gostos e hobbies, músicas e pensamentos. Desencontram-se a cada segundo na forma como cada um vive. Ela sempre apressada, exigente, perfeccionista, consegue rentabilizar o seu tempo na perfeição, arranja tempo para tudo e para todos, esbanja em simpatia, desdobra-se em actividades. Ele centrado nele, dá-se aos outros de forma particular, com pequenos gestos, minucioso, lento, perde-se no seu próprio trabalho, perde-se nos horários, chega sempre atrasado, vai sempre pelo caminho mais longo e vai parando para ver as montras. Ela corre como se tivesse o Mundo à sua espera. Ele caminha de forma lenta, muito lenta, como se o Mundo o esperasse de braços abertos seja a que hora for.
Amam-se de forma jovial, inconsequente e sem interesse. Não fazem muitos planos, vivem apenas o dia-a-dia. Ela sonha com um futuro a dois, rodeado de alegria. Ele deseja tê-la por perto, acha que ela é sua e isso basta.
Ela sofre com a ausência dele. Ele sofre por não ser como ela.
Ele tenta ser uma pessoa mais racional, transformando-se num ditador para ele próprio. Ela deixa de sorrir presa no sorriso dele.
Agora caminham juntos, mas ausentes um do outro. Já não há um sorriso partilhado. Estão horas seguidas sem trocarem uma palavra, um gesto. Desencontram-se nos beijos que trocam, vivem atrás um do outro, mas já não conhecem quem está ao seu lado.
O fim chegou de forma trágica e dorida. Ainda se falam mas como bons amigos. Dois anos em comum, com tanto partilhado. Aos poucos a ruptura instala-se. Ela pretende libertar-se para sempre daquele feitiço. Ele percebe que a perdeu e enlouquece. Entregues a eles, vagueiam sem saber quem são. Demoram a encontrar-se de novo. Ela recupera o sorriso. Ele recupera a esperança.
Passam dez anos sem saber nada um do outro. Crescem, vivem, sonham outras vidas. Esquecem-se um do outro sem nunca querer mexer no passado. No fundo a ferida cicatrizou, mas a marca permanece bem presente.
O Mundo transforma-se. As suas vidas tomam sentidos diferentes, cada vez mais opostos. Aos poucos ela está mais calma, já não corre, caminha apenas, vive um dia de cada vez, respira fundo antes de dizer o que pensa. Aos poucos ele começa a caminhar com mais vigor, já consegue chegar a horas, não se perde em si, mas encontra-se com frequência nos outros.
Agora, tantos anos depois, não desconfiam que a vida lhes possa pregar uma partida tão intensa, por isso vivem as suas vidas sem pensar um no outro.
Margarida trabalha com cautela, sem pressas, já percebeu que sozinha não vai conseguir mudar o Mundo. Um dia navega na Internet, faz pesquisas para um novo trabalho, sem saber que a surpresa estava embrulhada em bolinhas virtuais, esperando-a matreira e corajosamente. Encontra a página pessoal dele. Sim, ele estava mais organizado, agora lutava pela vida, pelos seus sonhos e pelos seus ideais.
Margarida mergulha de novo no passado, num passado que parece não ter passado. Encontra um André em forma perfeita e de bem com a vida. Ele está mais forte do que nunca, sente-se pela forma como tem a sua página, o seu curriculum, a sua imagem.
Mais uma vez o arrepio do Amor percorre-lhe o corpo. Mais uma vez o desejo de o conhecer e a sensação que estiveram sempre juntos. Mais uma vez é ela que toma a iniciativa e escreve-lhe.
Desta vez ele responde de forma intensa e descomprometida. Estava diferente, a vida tinha-se tornado mais leve, mais mãe e menos madrasta. Margarida, por sua vez estava mais receosa, marcada, mais fechada em si. A vida tinha sido durante muito tempo madrasta, por isso ela media cada passo com precaução.
Encontram-se apenas. Recordam e trocam elogios em nome de outros tempos, desejam tudo de bom um ao outro.
Sem saber, Margarida e André estão agora juntos mas separados fisicamente. Recorrem ao Mundo virtual para se encontrarem e agora sim de forma equilibrada e coerente. Ela mais receosa, ele mais espontâneo. Encontram-se no meio-termo e mostram como o Amor, quando existe e é para ser vivido não escolhe dias, meios nem lugares…atinge qualquer um, em qualquer idade.

3 comentários:

Anónimo disse...

Que posso eu comentar, quando eficazmente, tudo foi dito?!...
...
Margarida escreve pela "net" a André 10 anos depois. Ele fica reduzido a um punho de palavras. Introspectivo, como sempre... Os 7anos de pó que dera como encerrado um Baú que enclausurara uma história deixada a meio, espera um dia a coragem de ser reaberto.
“É dificil remexer em algo perigoso somente para inserir este manuscrito da Margarida” – pensou André de fobia miudinha, já desconhecida tantos anos quanto a existência do seu Saint-Grall, o Baú.
- Um dia, talvez um dia, mas não muito breve! – retorquiu ele estas palavras que tão familiares e saturadas se tornaram.

André abandona a folha imprimida numa caixa de papelão onde estava escrito “Para Repor”.

Anónimo disse...

O presente só faz sentido quando olhamos para tudo o que tivemos e fizemos no passado!!!

Há caminhos, no presente, que valem a pena ser percorridos...só assim encontraremos o nosso lugar!

Anónimo disse...

:=]Oxalá tenhas razão!... Porque será que vejo os meus caminhos tão turvos, de tão pouca nitidez? Existe sempre uma atmosfera condensada designada por nevoeiro...

(será chuva
será gente?
Miupia e estigmatismo não será certamente!?...
tenho de ir ao oftomologista) :=]