segunda-feira, 2 de janeiro de 2006

A Luz da Esperança II

Quinze anos depois, Teresa sai da prisão e tal como esperava sente um vazio imenso. Tinha-se habituado a viver isolada, dentro da cela, rodeada de paredes e muros. Já não sabia o que era sonhar. No dia em que perdeu o filho, perdeu também a esperança. Perdeu a força de viver e de lutar por um dia melhor!
O dia estava lindo, o céu azul, o sol brilhava como a dar-lhe as boas vindas. Teresa caminhou calmamente como já nada do que a esperava lá fora lhe despertasse realmente interesse. Não queria continuar presa, é verdade, mas já nada lhe fazia desejar a sua liberdade.
Podia ter-se matado como tantas vezes planeou, mas nunca teve coragem. Preferiu pensar em tudo aquilo que o Luís teria feito, sonhado ou querido para a própria mãe.
Moveu tudo aquilo que ainda a fazia viver, a lembrança do Luís. Aos poucos começaram a surgir convites para retomar a trabalhar e Teresa ficou sempre reticente, não sabia até que ponto suportaria o stress, a agitação do dia-a-dia de trabalho, os prazos, as pessoas a olharem para ela, as perguntas.
O seu aspecto físico estava diferente. Teresa não parecia realmente a mesma pessoa, mas isso nunca seria possível. A alegria, a forma espontânea como sorria, a força com que agarrava as oportunidades da vida, nada disso seria da mesma forma. A sombra que lhe percorria a alma alastrava-se por todo o corpo.
Um dos convites de trabalho era no mínimo irrecusável. Teresa sentia que aquela era a sua grande oportunidade para renascer. Partir para África para fazer uma reportagem fotográfica para uma revista da especialidade. Partiu como fotografa freelancer, sem prazos, regras ou imposições. Teresa podia gerir o seu tempo e a sua vida da forma como achasse melhor; percorreria vários países de África e demoraria o tempo que fosse preciso até ter o trabalho feito.
Teresa sentiu pela primeira vez, desde há vinte anos atrás, algum entusiasmo. Esta seria a oportunidade de tentar recomeçar a sua vida de uma forma diferente, com pessoas diferentes, em países diferentes e de uma forma livre.
Teresa encontrou muita miséria em África, muita dificuldade, uma forma muito dura de sobreviver com dignidade e amor-próprio e mesmo assim aquelas pessoas sorriam como se tivessem o Mundo nas suas mãos.
A fome era algo que a magoava imenso. As crianças vagueavam descalças, com um brilho intenso no olhar e despreocupadas. Tinham a barriga vazia maior parte das 24 horas do dia, mas não lhes faltava a vontade de viver, a força e a coragem para enfrentar as adversidades.
Aos poucos Teresa foi-se sentindo reconfortada. Como era possível ela sentir-se tão miserável se já tinha passado na vida por tantas alegrias. Já tinha amado com tanta intensidade e provavelmente nunca tinha passado por tanta fome, tanta miséria, tanto sofrimento.
Maior parte daquelas crianças já não tinha família, não tinham pelo menos um dos pais. As doenças eram o inimigo mais presente daquelas pessoas, e a Sida roubava de forma desalmada a vida daqueles que apenas queriam viver, deixavam as famílias destroçadas, sem alma, mas continuavam a lutar e a viver como se a vida fosse uma dádiva.
Numa das imensas reportagens, Teresa encontrou Magda, uma criança encantadora. Órfã de pai e de mãe. Vivia com uma avó e dez irmãos numa casa, a qual Teresa não sabia que se podia chamar assim.
Magda tinha entrado dentro do seu coração de uma forma pura. Tinha vindo buscá-la pela mão quando Teresa chegou à aldeia. Não a largou desde esse primeiro encontro. Os seus olhos azuis estavam sempre húmidos, brilhantes, uma luz encantadora faziam com que Teresa se tivesse apaixonado por Magda.
A partir desse dia Teresa viveu presa naquele olhar. Não sabia o que era acordar sem pensar em Magda e de um dia para o outro começou a estar ansiosa pelo futuro, a sonhar, a sorrir.
Uma tarde, foi fazer uma reportagem com a equipa médica de uma Instituição de Solidariedade Internacional. Pierre, o chefe de equipa médica recebeu-a e falou-lhe daquele mundo que Teresa já começava a conhecer. Estiveram mais de cinco horas a falar sem se aperceberem. Os momentos que Teresa captou em fotografias naquela tarde revelavam muito mais do que uma reportagem, revelavam a essência de alguém que se tinha dedicado de corpo e alma àquelas crianças. Quando se aperceberam, Teresa e Pierre já falavam das suas vidas, do passado, dos seus sonhos, de como era triste ver aquelas crianças sofrerem, mas como era reconfortante pensar que o futuro de algumas delas podia ser realmente muito melhor.
Teresa ficou entusiasmada, contou-lhe da paixão por Magda, de como ela tinha entrado no seu coração e Pierre sorriu docemente. Um olhar de carinho, de saudade, de ternura. Teresa percebeu que havia ali qualquer coisa que os ligava. Pierre contou-lhe que Magda também tinha um lugar especial no seu coração. Os seus olhos, faziam-lhe lembrar a filha, que tinha desaparecido à anos atrás sem que nunca mais ninguém tenha conseguido descobrir o seu paradeiro.
Sem saber, sentiam-se ligados. Ligados por Magda e ligados pelo passado amargo. Ambos tinham perdido os filhos e ambos tinham vivido presos ao sofrimento até encontrarem aquele olhar, o olhar de Magda e aquela luz, a luz que lhes tinha devolvido a esperança.
Teresa perguntou se era possível adoptar alguma daquelas crianças. Sim era possível e Pierre até tinha alguns dos papéis necessários para a transição legal. Ele tinha pensado o mesmo, mas estava a ganhar coragem. Ainda não tinha conseguido encontrar força para partir e deixar Magda sem a sua terra, sem os seus irmãos, sem a sua família. Era disto que Pierre falava, algumas crianças tinham a sorte e oportunidade de ter um futuro muito mais risonho, mesmo assim, ainda bem que algumas delas podiam um dia sorrir sem sentir a dor da fome.
Pierre pegou na mão de Teresa, que baixou os olhos como se tivesse outra vez quinze anos e alguém lhe dissesse que a amava.
Jantaram juntos, caminharam pela noite fora de mão dada e aos poucos foram fazendo o luto de todos aqueles anos de sofrimento. Voltaram a sorrir, voltaram a amar. Algo que os dois achavam que seria mesmo impossível.
Já a noite ia longa, Teresa e Pierre estavam os dois sentados perto do acampamento da Ajuda Médica Internacional quando ouviram passos. Voltaram-se os dois em simultâneo e atrás deles Magda sorria e perguntava se podia ficar com eles.
No dia em que Teresa voltou a Portugal, trazia na mala o trabalho de muitos meses e muita saudade. Magda vinha de mão dada com ela, sorria como se tivesse renascido. Pierre olhava-as embevecido, tinha no coração uma alegria imensa, suspirava vezes sem conta, mais do que ganhar de novo uma filha, Pierre tinha reencontrado o amor ao lado de Teresa e o passado dela despertava em si um orgulho do tamanho do Mundo, não pelo facto de Teresa ter vingado a morte do seu próprio filho, mas por ter conseguido suportar tudo aquilo e conseguir ainda sorrir.

1 comentário:

mixtu disse...

Final feliz... fico contente pelos 3.